1. A Agulha e a Linha APÓLOGO Machado de Assis
·
2. Era uma vez, uma agulha, que disse a um orgulhoso novelo de linha: - Oi,
linha! Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para
fingir que vale alguma coisa neste mundo? -Deixe-me Senhora! -Que a deixe? Que
a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que
sim e falarei sempre que me der na cabeça.
·
3. -Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não
tem cabeça. Que lhe importa meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. -Mas você é orgulhosa. -Decerto
que sou. -Mas por quê? -É boa! Porque costuro. Então os vestidos e enfeites de
nossa ama, quem é que os costura, senão eu?
·
4. -Você? Esta agora é melhor. Você é que os costura? -Você ignora que
quem os costura sou eu, e muito eu? -Você fura o pano, nada mais; eu é que
costuro, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... -Sim, mas que
vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás,
obedecendo ao que eu faço e mando... -Também os batedores vão adiante do
imperador. -Você, imperador? Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um
papel subalterno, indo adiante: vai só mostrando o caminho, vai fazendo o
trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
·
5. Estavam nisso, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei
se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé
de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da
agulha, pegou da linha,enfiou a linha na agulha, e entrou a costurar. Uma e
outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas,
entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana. E dizia a agulha:
Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
·
6.
·
7. A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era
logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz,e não está
para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta,
calou-se também, e foi andando. E era tudo silencio na saleta de costura; não
se ouvia mais que o plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a
costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
·
8. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a
ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto
necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama,e puxava a um lado ou
outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolcheteando, a linha,
para zombar da agulha, perguntou-lhe:
·
9. Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,
fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e
diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para
o balaio das mucamas ? Vamos, diga lá.
·
10. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça
grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: -Anda, aprende, tola.
Te cansas em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí
ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém.
Onde me espetam, fico.
·
11. Contei esta história a um velho professor, que me disse, abanando a
cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha presunçosa!
Nenhum comentário:
Postar um comentário